sábado, 30 de novembro de 2013

Diário da Noite, 31 de Julho de 1950

NÃO ESTÁ CERTO

No suplemento de novidades para agosto, da Odeon, figura um disco gravado por Dircinha Batista, no qual vamos encontrar dois sambas: Chama-se João, que leva a assinatura de Ary Barroso, e Na Batucada da Vida, também de Ary Barroso, mas com palavras de Luiz Peixoto. O primeiro desses sambas é típico de Ary Barroso, isto é, leva a sua marca registrada, composto no seu estilo habitual. Na Batucada da Vida, entretanto, é de lamentar-se tenha sido brotado da pena do prestigioso compositor nacional. E mais lamentável ainda quando se observa a letra reprovável para ela alinhavada por Luiz Peixoto. Lamentável, principalmente, porque tanto Ary Barroso quanto Luiz Peixoto são autores de reais e merecidos méritos. Se a música de Ary está incompatível com a sua capacidade artística, a letra de Luiz Peixoto compromete seriamente o seu autor. Talvez poder-se-ia perdoar o próprio Ary Barroso pela fraca composição. Afinal, nem tudo o que sai da cachola de um autor – por maior que seja o seu renome – é aproveitável. Entretanto, no que se refere à letra não se poderá dizer o mesmo. Talvez se poderia, se fosse apenas fraca. Entretanto, não é simplesmente fraca, mas indecente, imoral, inconcebível para tema de música que vai ser levada ao disco.

Luiz Peixoto
Luiz Peixoto, ao escrever os versos de Na Batucada da Vida, acostumado que está a produzir para o teatro de revista, geralmente com “quadros” fortes e apimentados, com certeza, julgou que estaria escrevendo para uma dessas produções teatrais. E o resultado foi que se perpetuou na massa uma imoralidade. O tema de que lançou mão o autor dos versos foi o mais infeliz possível. Conta a história de uma jovem, perdidamente apaixonada, que acabou sendo atirada à rua da amargura. Para dizer isso, Luiz Peixoto usa e abusa de uma linguagem libertina, atrevida, chocante, dizendo frases e palavras como estas: “Hoje eu sou mesmo da virada”, “topo qualquer parada” e “vou me esculhambando”[1]...

Ary Barroso
Dircinha Batista, por sua vez, procura dar realismo à monstruosidade e diz as palavras com tanta propriedade, que a impressão que se tem é de que quem está cantando é, com efeito, a própria personagem imaginada por Luiz Peixoto. Boa interpretação, portanto.

Boite Oasis, Diário de S. Paulo, 4/5/50
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O acompanhamento foi executado pelo próprio Ary Barroso, ao piano, com um pequeno conjunto de ritmo. Muito interessante o seu piano, especialmente na face de Chama-se João.

Pesa-nos dizê-lo, mas o disco em questão, pela face de Na Batucada da Vida, não pode ser recomendado. Na etiqueta deveria ser colocado um selo com os seguintes dizeres: “Proibido para menores de dezoito anos”.

Na foto: Por maior que seja a nossa boa vontade, não podemos aceitar o último disco de Dircinha Batista, especialmente pela face de Na Batucada da Vida, que leva as assinaturas de Ary Barroso e Luiz Peixoto, que é, como dissemos em nossa crônica ao lado, e como qualquer um poderá verificar, um autêntico samba impróprio para menores, senhoras e senhoritas.


[1]A letra diz “irei cada vez mais me esmolambando”.

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